21/10/2010

A Justiça Divina e a Missão de Santificação - Por Jacir de Freitas Farias

INTRODUÇÃO GERAL
Um fariseu santo e um publicano pecador. Um fariseu seguidor da Lei e um publicano que reconhece os seus erros. Dois personagens que rezam. Dois personagens que esperam. Um, a recompensa, e o outro, a misericórdia.


Hoje é o dia mundial das missões. Ousamo--nos perguntar: devemos recorrer sempre ao amor misericordioso de Deus ou simplesmente a prática da religião e da fé é garantia da salvação? Como ser testemunho da fé para aqueles que nunca ouviram falar de Jesus? É possível ser missionário para aqueles que já se dizem cristãos, mas que não vivem conforme o evangelho? Que relação existe entre justiça e missão? Alguém da comunidade conhece um missionário? Onde eles vivem? A essas duas últimas perguntas, uns poderão responder: conheço um padre que veio para o Brasil como missionário. Outros ainda dirão: lugar de missão é na África.
Missão é um substantivo que vem do latim (mittere) e significa enviar. Daí missus (missão) ser um enviado. Podemos falar de vários tipos de missão. No nosso caso, não estamos falando da missão de paz de um ministro x em um país y. Estamos falando de uma missão religiosa, que tem a ver com o evangelho. Um ser humano é enviado em nome de Deus para levar sua palavra a outros seres humanos que não a conhecem ou, atualizando, que pensam que a conhecem.

Num passado longínquo, a Igreja católica enviou missionários além-mar para levar a fé e a salvação anunciada por Jesus. O nosso país é fruto dessa intrépida ação que chegou às terras brasileiras com a cruz e a espada. Com o evangelho a bordo, o que desembarcava mesmo era a cultura cristã europeia. Por outro lado, é difícil desvencilhar uma da outra. Aos nativos restava uma única opção: aceitar ou aceitar a fé e a cultura dos missionários. Quando os nossos indígenas já estavam massacrados, os negros foram trazidos da África para serem domesticados na fé do novo mundo. O princípio missionário, a gasolina que movia os evangelizadores, era a certeza de que a semente do Verbo não estava presente nas culturas dominadas.
Em nossos dias, esse modo de evangelizar não é mais compatível. É consenso que toda cultura tem que ser valorizada. Além disso, evangelização é via de mão dupla. Toda comunidade e pessoas são missionárias, no sentido de anunciar o evangelho, sem mesmo nunca terem saído de suas cidades. Continua o desafio de evangelizar no além-mar, mas de modo diferente. Muitos brasileiros e brasileiras, outrora evangelizados, partem agora como missionários para a África e a Ásia.

Dando continuidade à nossa reflexão, ainda perguntemo-nos pelos valores que as leituras de hoje nos relembram como essenciais na evangelização. Vejamos.

COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Eclo 35,12-14.16-19): a justiça divina e a missão de santificação. A sabedoria bíblica tem no livro do Eclesiástico, dentre tantas temáticas, a da justiça divina, que aparece nesta primeira leitura e no evangelho. Ela tem a ver com o culto, mas, sobretudo, com o comportamento ético do ser humano. Deus não pode ser comprado com rituais, sacrifícios ou posição social. Deus é um justo juiz que não faz acepção de pessoas. Por outro lado, ele tem uma predileção especial pelos mais pobres e injustiçados da sociedade. Ele ouve a súplica, a oração do pobre, do órfão e das viúvas, os oprimidos da sociedade de então. Essa oração não ficará sem retorno.

A oração, realizada com sinceridade, é o caminho que conduz a Deus, que ouvirá com destreza a súplica do arrependido. A missão do povo de Deus é a de ser santo como Deus é santo. A santidade de Deus, na qual o judeu deve se inspirar, passa pela vivência e o anúncio da Sua justiça. Jesus, mais tarde, nessa mesma linha de reflexão, propõe aos seus ouvintes a parábola do fariseu e o publicano, que veremos a seguir.

2. Evangelho (Lc 18,9-14): o fariseu e o publicano diante da proposta de salvação. O evangelho deste domingo, assim como o do domingo passado, nos coloca em contraste dois anônimos personagens, o fariseu santo e o publicano pecador. O fariseu se enquadra bem na visão judaica de missão: levar a santificação para todos os povos. Como bom judeu, ele deve seguir a Lei para tornar-se um santo e exemplo para todos.

Os fariseus nasceram no período do governo asmoneu de João Hircano (135-104 a.E.C.). O grupo era composto de doutores da Lei, escribas, sacerdotes do terceiro escalão, pequenos comerciantes e artesãos. O projeto messiânico dos fariseus era o de fortalecer a Torá oral, a tradição. Negar o monopólio dos sacerdotes na interpretação da Torá. Combater a política profana dos sacerdotes-príncipes asmoneus. Interpretar de forma popular a Torá para o povo. Fariseu significa “separado” dos impuros, portanto, eles pretendiam fazer de Israel um povo santo, isto é, puro, na observância radical da Lei. Eles acreditavam na ressurreição e esperavam o Messias, que viria para restaurar o poder político e levar Israel ao cumprimento da Torá. O Messias chegaria no momento definido por Deus. Até que isso acontecesse, o povo devia se preparar, não seguindo o caminho indicado pelos asmoneus.
Com pouca influência no campo da política, os fariseus controlavam as sinagogas, que eram os lugares de estudo, oração e reunião do povo. Por serem fiéis observadores da Lei mosaica, os fariseus eram respeitados e amados pelo povo. No entanto, foi esse mesmo rigorismo que os distanciou das classes populares, fazendo com que eles não percebessem as necessidades e sofrimentos do povo diante do império romano. Os pobres não eram capazes de seguir o rigorismo proposto pelos fariseus e, por isso, foram deixados de lado. O fariseu era o símbolo do homem justo e reconhecido publicamente como tal. O famoso texto de Mt 24, que faz um estereótipo do fariseu, parece não ter sua origem na fala de Jesus, mas em brigas posteriores entre judeus e cristãos. Jesus tinha amigos fariseus. Com a guerra judaica (67-70 E.C.), o farisaísmo foi o único grupo judaico que permaneceu e perpetuou o judaísmo.

Os publicanos, por outro lado, eram pessoas escolhidas pelo império romano para cobrar impostos dos seus irmãos judeus e repassá-los ao império. Muitos deles, fazendo uso de tal privilégio, se enriqueciam na função, como no caso de Zaqueu. Para o povo, o nome de publicano era sinônimo de traidor, pecador público. O publicano do evangelho de hoje está numa outra dimensão, a da missão do cristianismo: ser receptor da misericórdia salvífica de Deus. A comunidade de Lucas deixou claro, neste texto e em outros, que a salvação é para todos, não somente para os judeus, aqui representados pelo fariseu. A salvação é mais ampla e passa pela justiça divina e sua misericórdia infinita.
Fariseu e publicano se encontram num contexto de oração, no templo de Jerusalém, lugar por excelência do encontro com Deus, lugar de oração pública e pessoal. O fariseu se gaba de ter ido além do que prescreviam os preceitos religiosos da Torá. Ele se diz não igual ao resto dos homens, todos ladrões, injustos eadúlteros, e, tampouco, como o publicano que ele vê ao seu lado. Ele paga dízimo e jejua duas vezes por semana. O fariseu se arvora no direito de ser juiz diante do publicano, coisa que só compete a Deus. O publicano se humilha e reconhece ser um grande pecador. Ele implora a misericórdia de Deus, batendo no peito.

Estranho na parábola é que o publicano pecador é que é o bom. Da boca de Jesus se ouve a afirmativa de que ele encontrará a sua salvação. A atitude de Jesus parece radical e impiedosa. E o ouvinte da parábola se pergunta: então, por que devo ser justo, se as obras não valem? A resposta a essa pergunta é a mesma das parábolas dos domingos anteriores: o que vale é a misericórdia de Deus e o seu julgamento. Deus é justo. Sua justiça se baseia numa relação ética entre seres humanos. A justiça revela quem cada um de nós somos. Se amo o meu próximo, sou justo diante de Deus. O grande erro do fariseu foi o de não amar o seu próximo, mas a si mesmo. Ele se julgava tão justo que nem precisava do julgamento de Deus. Ele se esqueceu de Deus e se colocou como juiz.
A parábola do evangelho de hoje ilumina nossa ação missionária na medida em que nos comprometemos a anunciar o evangelho da salvação para todos, reconhecendo nossa limitação e humanidade diante de Deus. Enquanto instituição formada por humanos, a igreja também faz o seu pedido de perdão pelos erros cometidos no seu passado missionário e pede a Deus, como o publicano, que a ilumine nos caminhos da missão evangelizadora, sem se deixar corromper pelo caminho da falsa religião.

3. II leitura (2Tm 4,6-8.16-18): Paulo fala de sua missão cumprida: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” Estamos diante de umas das mais célebres frases atribuídas a Paulo. Ele afirma que combateu o bom combate, guardando a fé. Já no fim de sua missão apostólica, Paulo faz um balanço de sua vida missionária e percebe que valeu a pena anunciar Cristo ressuscitado. Ele faz um testamento de fé. Paulo, o maior dos missionários do cristianismo emergente, anunciou com firmeza, fé e esperança a proposta evangélica de Jesus. Jesus, que ele tampouco conhecera, mas que se revelou a ele como ressuscitado, no famoso episódio de Damasco (At 9,1-25).
A narrativa dessa segunda leitura é simples, mas cheia de simbolismo. Todos os missionários, assim como Paulo, são verdadeiros atletas que almejam o pódio. Ele e todos os que realizam a missão do anúncio do Reino de Deus receberão o prêmio da vitória. O pódio da vida em Deus, da justiça, já e ainda não. Deus é quem dá ao atleta da missão a coroa da vitória, a coroa da justiça misericordiosa. Pena que muitos desistem antes do fim, lamenta Paulo. Pena que seus amigos o abandonaram, quando estivera diante do tribunal. Eles o abandonaram, mas Deus não o abandonou e nem nos abandonará jamais. Ser missionário é um desafio constante. Testemunhar a fé é tarefa cotidiana. Viver a fé é um desafio ainda maior. Eis a grande mensagem complementar dessa segunda leitura.

PISTAS PARA REFLEXÃOO publicano são todos aqueles que, compartilhando com o sistema injusto, tomam consciência de seus erros e pedem perdão. Levar a comunidade a perceber as injustiças de nosso sistema e sua relação com a justiça divina. Perguntar se é possível ser justo em sistemas alicerçados na injustiça.
Convocar a comunidade a assumir atitudes missionárias em seu próprio ambiente geográfico, por meio da pregação e da vivência dos ensinamentos de Jesus. Como nos preparar para a morte, como Paulo, o grande missionário, que cumpriu com fé e perseverança a sua missão?
Santificação e salvação são dois modos encontrados no cristianismo e no judaísmo para expressarem a missão de todo o povo de Deus. Erros e acertos aconteceram historicamente. Como ser missionário hoje? Por que a justiça é o centro de nossa ação missionária, alicerçada na vida de oração.


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