Paulo é o homem das encruzilhadas. Viveu e operou em diferentes mundos, línguas e culturas. Desenvolveu uma presença, mais esporádica ou mais continuada, em centros urbanos importantes e disseminados como Antioquia na Síria, Éfeso na Ásia Menor, Filípos, Corinto e Atenas na Grécia, culminando a sua obra no coração do império. Um verdadeiro corre-mundos do Tempo Antigo.
Paulo sempre ocupou uma posição especialmente cômoda: a critica, não menos que a tradição, acredita saber quem foi, onde nasceu, qual o seu caráter, quais foram as etapas fundamentais de sua vida e as datas correspondentes, as cartas que escreveu, quem foram os seus destinatários e inclusive qual o conteúdo e a intenção dessas cartas. Ao tratarmos acerca da biografia de Paulo, temos de considerar as inúmeras controvérsias existentes entre os variados estudiosos que aprofundam o tema. Contudo, não obstante à pluralidade de hipóteses sobre a vida de Paulo, é possível fazer algumas afirmações seguras sobre este polêmico Apóstolo das nações e ‘Comunicador do Crucificado’.
Lucas é extenso em detalhes ao descrever a perseguição da Igreja por Paulo. Menciona-o primeiro como um jovem (At 7,58) que assistiu com satisfação à horrível execução de Estêvão (At 8,1). Sua aparição seguinte é como o grande perseguidor que penetra nas casas dos cristãos e lança os ocupantes na prisão (At 8,3). Em Gl 1,13 destaca “perseguia sobremaneira e devastava a Igreja de Deus”. Nesses escritos, a questão da perseguição é colocada como pano de fundo para sua atividade de Apóstolo. Mas, Paulo não o faz como auto-condenação, para alimentar um sentimento de culpa, e sim para destacar a gratuidade de ação de Deus ao lhe conceder o ministério de Apóstolo.[2] Sobre a sua mudança de vida, Paulo não fala em conversão, em contraste com os três relatos pormenorizados que Lucas faz da conversão dele. (At. 9,1-19; 22,4-16; 26,9-18.), mas se expressa de forma enigmática em seus escritos para mostrar o que aconteceu em seu encontro com Jesus.
Podemos afirmar que Paulo interpreta o acontecimento de Damasco como um chamado de Deus, uma vocação a uma missão que o assemelha aos profetas do Antigo Testamento. Como eles, foi ele agraciado com uma visão; uma missão lhe foi imposta do mesmo modo que a eles; como eles também, ele é obrigado a corresponder ao chamamento; sua vontade humana é investida pela graça ao ponto de Deus mesmo realizar a obra que lhe foi confiada.[3]
A experiência que dá novo rumo à existência de Paulo é recordada em diversas passagens de suas cartas (I Cor 7,25) [4] em que ele não descreve pormenores e prevalece o silêncio. Paulo não é um pecador que retorna ao caminho do bem. Por isso, uma forma de se referir a esse acontecimento é falar de uma descoberta de Cristo com os olhos da fé, o filho de Deus, único mediador da salvação.[5] Paulo diz que viu “Jesus” e por isso é apóstolo (I Cor 9,1s). Quer dizer que somente uma experiência lhe valeu tanto como valeram aos demais apóstolos, os irmãos do Senhor e até mesmo a Pedro (v.5). A este contato direto corresponde a ideia de que é Apóstolo ‘não da parte de homem e nem por meio de algum homem’ (Gl 1,1) e que o Evangelho ‘não o recebeu nem o aprendeu de homem nenhum’ (v.12). Também é própria de uma comunicação direta, por seu caráter surpreendente, a ideia de que Deus lhe revela ‘seu Filho’ e lhe pedia que o anunciasse entre os gentios.
Ser Apóstolo de Jesus Cristo é sinal primordial da intervenção divina na vida de Paulo. Quase todas as cartas do “corpo paulino” trazem no início a auto-apresentação do Apóstolo. “Paulo, Apóstolo de Cristo Jesus pela vontade de Deus” (Rm 1,1) [6] ou com pequena variação de palavras ou nomes de companheiros dele como remetentes junto com ele.
Existem diversas opiniões sobre o que aconteceu com Paulo, desde a sua chegada a Roma até a sua morte como mártir naquela cidade[7]. A última viagem de Paulo se inicia com a decisão de ir a Jerusalém (At. 21,17) para levar algumas ofertas à comunidade. Após ser preso, Paulo é deportado para Roma onde, segundo a tradição, algumas semanas mais tarde, sofreu a pena reservada a um cidadão romano - a decaptação pela espada. [8]
A missão e o anúncio
A consciência da missão faz de Paulo um itinerante. Ele realiza verdadeiros empreendimentos em suas viagens, enfrentando perigos para pregar o Evangelho – anunciar o Crucificado. Os Atos dos Apóstolos descrevem três grandes viagens (At 13-14; 15,36-18; 18,18-20,38), mas ele mesmo fala de muitas: “Fiz muitas viagens. Sofri perigos nos rios, perigos por parte dos ladrões, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar. Três vezes naufraguei. Passei um dia e uma noite em alto-mar”. (II Cor 11,25-26).
O núcleo da mensagem de Paulo é o querigma cristão, o anúncio da morte e da ressurreição de Jesus. O evangelho anunciado por Paulo é muito mais que uma comunicação verbal de doutrinas ou normas, e se fundamenta no anúncio da morte escandalosa[9] de Jesus na cruz e na sua ressurreição como manifestação do poder de Deus.
[1]James Dunn corretamente observa que Paulo se refere a um comissionamento ao invés duma conversão, e que desde o início, teve os gentios em vista. De fato, a epifania de Jesus na estrada para Damasco foi não só a base do seu chamamento, mas constituiu o seu conteúdo principal e o seu impacto mais imediato e mais duradouro. Este chamamento não era um corolário secundário ao encontro, mas, de novo, o seu conteúdo principal. Cf. DUNN, James D.G. A teologia do apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.
[2]COMBLIN, José. Paulo Apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Editora Vozes, 1993. p. 25
[3]CERFAUX, Lucien. O Cristão na Teologia de Paulo. São Paulo: Paulus, 2003. p. 91
[4]Ver também II Cor. 4,1; Gl. 1,5-16.
[5]Cf. BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo I. São Paulo: Loyola, 1989. p. 20
[6]Ver também I Cor. 1,1; II Cor. 1,1; Gl. 1,1; Ef. 1,1; Cl. 1,1; I Tm. 1,1; II Tm. 1,1; Tt. 1,1)
[7]Ver algumas opiniões sobre o final da vida de Paulo em: BOSCH, Jordi Sánchez. Escritos paulinos: Introdução ao estudo da Bíblia. Vol. 7. São Paulo: Ave Maria, 2002. p. 37.
[8]COTHENET, E. São Paulo e o seu Tempo. Cadernos Bíblicos – 26. São Paulo: Paulinas, 1985. p. 35
[9]Os cristãos vêem na cruz um símbolo de triunfo, de vitória. No entanto, quando Jesus foi crucificado significava derrota e vergonha. A crucificação entre os romanos era reservada primeiramente aos escravos e para aqueles que haviam cometido crime hediondo (sórdido, repulsivo, imundo etc.), ou seja, a cruz era pena infligida para a pior espécie de malfeitores, ladrões e marginais. Contudo os cidadãos romanos estavam isentos dessa pena por leis especiais. Jesus na cruz foi exposto à vergonha pública. Morrer na cruz era ser exposto a pior vergonha possível para um judeu, que inclusive na cultura judaica significava maldição, como se lê em Gálatas 3.13: “Cristo nos redimiu da maldição da lei quando se tornou maldição em nosso lugar, pois está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado num madeiro”, e Paulo, está fazendo referência a Deuteronômio 21.23. Ele ainda diz que a cruz era escândalo para os judeus: “Nós, porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é escândalo para os judeus e loucura para os gentios” (I Cor 1.23.). Cf. ELLIS, E.E. Christ Crucified. In: Reconciliation and Hope: New Testament Essays on Atonement and Eschatology. Grand Rapids : Eerdmans, 1974, p. 69-75.