Desafios e perspectivas a partir do Documento de Aparecida (DA). A missão de comunicar vida é a razão de ser da Igreja (cf. DA 373). Por isso ela é chamada a desinstalar-se: “a Igreja necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do continente” (DA 362). Se “missão” significa “envio”, todo envio pressupõe um deslocamento e uma saída: “nós somos agora, na América Latina e no Caribe, seus discípulos e discípulas, chamados a navegar mar adentro para uma pesca abundante. Trata-se de sair de nossa consciência isolada e de nos lançarmos, com ousadia e confiança (parrésia), à missão de toda a Igreja” (DA 363). A conversão missionária da qual fala o Documento de Aparecida (DA) em uma de suas páginas centrais (cf 7.2 - Conversão pastoral e renovação missionária das comunidades) trata-se substancialmente de uma saída. Na saída de si, do círculo da própria comunidade e dos confins da própria terra, se realiza para a Igreja essa conversão. Paradoxalmente, é nessa saída que a Igreja encontra sua razão de ser e sua própria identidade.
Temos que ser de novo evangelizados.
O tema da conversão, antes de ser dirigido aos destinatários da missão, é apontado pelo DA como exigência fundamental para a própria Igreja. Com o mesmo espírito do Vaticano II, Aparecida analisa que, na atual conjuntura de grandes mudanças, “sentimo-nos desafiados a discernir os ‘sinais dos tempos’” (DA 33) e “a assumir uma atitude de permanente conversão pastoral” (DA 366). Na mudança global a Igreja precisa mudar também, mas não apenas pastoralmente “seu jeito de ser”: ela precisa ser evangelizada de novo para converter-se numa Igreja cheia de ímpeto e audácia evangelizadora (cf DA 549). Conversão é um convite para Igreja e não, primeiramente, para o mundo. O conteúdo dessa conversão consiste no surpreendente e profundo re-encantamento com a essência do Evangelho, um Evangelho assumido e vivido não como doutrina, mas como “práxis de vida baseada no dúplice mandamento do amor”. Essas palavras do papa Bento XVI indicam um caminho a seguir, aparentemente quase óbvio: “não temos de dar nada como pressuposto e descontado, todos os batizados são chamados a ‘recomeçar a partir de Cristo’” (DA 549).
O motivo da conversão missionária não é novo. Já a Redemptoris Missio declarava que: “a ação evangelizadora da comunidade cristã, primeiramente no próprio território e depois, mais além, como participação na missão universal, é o sinal mais claro da maturidade da fé. Impõe-se uma conversão radical da mentalidade para nos tornarmos missionários - e isto vale tanto para os indivíduos como para as comunidades” (RMi 49).
Relacionar essas afirmações com a seguinte passagem do Decreto Ad Gentes, pode ressoar um tanto intrigante e desafiador: “a graça da renovação não pode crescer nas comunidades, a não ser que cada uma dilate o campo da sua caridade até aos confins da terra e tenha igual solicitude pelos que são de longe como pelos que são seus próprios membros” (AG 37). O Vaticano II aponta decididamente para a dimensão universal da missão como fator determinante para uma verdadeira conversão entendida como saída de si.
Em que medida isso faz sentido para a realidade latino-americana? A saída de si tem como horizonte os confins da terra. É sempre um andar “extrovertido” além de todas as fronteiras. Essa universalidade não significa “tarefa específica”, mas diz respeito à própria essência e à dinâmica da missão. Se nossa missão fosse geográfica, cultural, étnica, socialmente ou eclesialmente limitada e se dirigisse somente a uma pequena clientela de “eleitos”, ela se tornaria excludente. João Paulo II em sua encíclica missionária afirma: “Sem a missão Ad Gentes, a própria dimensão missionária da Igreja ficaria privada do seu significado fundamental e do seu exemplo de atuação” (RM 34).
De que maneira podemos suscitar em nossos batizados e em nossas comunidades uma abertura verdadeiramente missionária sem uma perspectiva genuinamente sem fronteiras, católica, atenta e sensível ao mundo todo? Sem esse respiro, corremos o risco de cair “na armadilha de nos fechar em nós mesmos” (DA 376), numa dinâmica centrípeta e, afinal, egocêntrica, traindo a missão e o espírito do próprio Evangelho.
Peregrinos a caminho.
Ainda hoje, apesar de nossos esforços, somos tentados a compreender a missão a partir de nós. O princípio da missão consiste no seguinte: não podemos esperar que as pessoas venham a nós, precisamos nós ir ao encontro delas e lhes anunciar a Boa Nova ali mesmo onde se encontram. Isso parece quase óbvio. No entanto, na prática, a Igreja sempre teve a tentação de evangelizar os povos a partir de sua própria condição, permanecendo em seu lugar, a partir de sua própria cultura, enviando e delegando seus missionários, mas sem se envolver num movimento de saída e de inserção nas situações que desejavam evangelizar.
Nesse sentido, metáforas usadas pelo DA em descrever a Igreja e sua missão, podem levar a algum equívoco. Por exemplo, a frequente imagem da Igreja como “casa e escola”, assim como o verbo “acolher” que a acompanha, expressam uma dinâmica missionária só por analogia. Missionário não é, em si, aquele que acolhe, mas é o acolhido. Missão é um termo que desde o Vaticano II serve um pouco para descrever toda ação da Igreja. No entanto, não podemos perder de vista o que especificamente se entende com isso, sob pena de esvaziar o seu sentido.
Uma Igreja enviada é uma Igreja que está fora de casa, que faz a experiência radical do seguimento, do despojamento e da itinerância, como companheira dos pobres (cf DA 398) e como hóspede na casa dos outros. O discípulo é essencialmente um peregrino e um enviado que deixou casa, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos, terras, por causa de Jesus. Esse Jesus disse: “Eu sou o Caminho” (Jo 14, 6) e não: “Eu sou a chegada”. Jesus inverte a perspectiva de Tomé, que queria conhecer o caminho a partir do ponto de chegada: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” (Jo 14, 5). Esta identificação de Jesus com o caminho foi algo de marcante para os primeiros cristãos. Eles se autodenominavam de “pertencentes ao Caminho” (At 9, 2).
A palavra “caminho” aparece mais de cem vezes no DA. Isso indica que o caminho não afasta a Igreja da sua origem ou das suas raízes. Pelo contrário. É um encontro com suas raízes em Jesus, “o Deus de rosto humano”. Ao mesmo tempo, os discípulos de Jesus não são árvores. Eles têm uma relação diferente com o chão da história. Eles “vivem dispersos como estrangeiros no Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia” (1Pd 1, 1) mas são “concidadãos do povo de Deus e membros da família de Deus” (Ef 2, 19). Seus pés foram feitos para caminhar e não para ficar plantados num determinado lugar. A raiz é presa ao chão por um trato cruel: “se você quer se libertar, morre”. A missão faz da Igreja uma peregrina livre de qualquer amarra contextual, num caminhar cheio de imprevistos, aberto, desarmado na simplicidade e na pobreza, que convida continuamente descobrir Deus de novo no pobre e no outro.
Abandonar as estruturas caducas.
Na história da evangelização, a missão foi entendida a partir da cristandade, como uma saída geográfica para territórios não-cristãos, que tinha como objetivo a expansão e a implantação da Igreja no mundo. O próprio conceito de Ad Gentes estava impregnado de uma forte visão etnocêntrica e eclesiocêntrica. Os destinatários desta missão eram as gentes ou pagãos, dois termos com conotações depreciativas. Quem se considera “povo eleito” chama os outros de gentes ou de pagãos, que significam no latim “rudes”, “toscos”, “camponeses”, “atrasados”. A missão cristã aos diferentes povos foi muitas vezes marcada por um trágico senso de superioridade e por uma presunção civilizadora absolutamente secular.
Pelo menos desde Carlos Magno (†814) o anúncio do Evangelho a todos os povos concretizou-se com agressões militares que arrasavam e impunham com a espada o batismo e a “salvação cristã”. Na experiência fundante do “Novo Mundo”, mais uma vez, a missão cristã foi cúmplice e parceira estratégica de uma aventura sangrenta de desencontro, de opressão e de domínio. A colonização do mundo por parte do Ocidente forneceu, de fato, o contexto para o surgimento da missão. Se, de um lado, não podemos identificar a colonização com a missão, por outro os muitos exemplos de missionários que resistiram corajosamente às potências coloniais e às suas políticas não mudaram significativamente o quadro geral.
Seria, então, a própria missão Ad Gentes uma “estrutura caduca” da qual fala o DA 365? Em certos sentidos sim. Contudo, algumas tentativas em abandonar esse conceito e essa prática, curiosamente, não deram certo. Uma delas foi o de substituir a palavra “missão” pelo termo mais bíblico “evangelização”. A Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi de Paulo VI, representou um esforço nessa direção, na tentativa de expurgar a missão da Igreja de toda uma ideologia exclusivista, eclesiocêntrica, hegemônica e expansionista. Nessa operação de boas intenções, porém, essa ideologia disfarçadamente permaneceu nas práticas das Igrejas, e o problema das mediações históricas do Evangelho, indelevelmente marcadas por limitações e pecados, não foi substancialmente resolvido. Além do mais, o conceito de “evangelização” era perigosamente menos amplo do que “missão”: evangelização é missão, mas missão não é somente evangelização, é também diálogo, promoção humana, testemunho, todas as atividades que servem para libertar o ser humano da escravidão na presença do Reino vindouro.
O caminhar da missão em direção a esse Reino é sempre um caminhar no Espírito que exige um trabalho permanente e penitencial de discernimento entre desejo, esperança, riscos a serem assumidos e realidade. Esse discernimento é feito a partir das origens do caminho, e constitui o elemento essencial para não confundir a fidelidade ao Senhor com a fixação em esquemas limitados. As estruturas caducas que precisam ser abandonadas (cf DA 365) estão sedimentadas no profundo de nossa consciência eclesial. Por isso necessita uma ação insistente, paciente e participativa de mudança de mentalidade da qual possam surgir “processos constantes de renovação missionária” (DA 365).
A dignidade dos pobres.
“Reconhecer a imensa dignidade dos pobres aos olhos de Cristo” (DA 398). Pelo mesmo crivo passam também pilares fundantes da teologia da missão: a unicidade da salvação em Cristo e a necessidade da Igreja. Seriam também esses conceitos “estruturas caducas” a serem abandonadas? A pretensão universalista cristã está baseada na proclamação de um único e verdadeiro Deus, e na adoção de meios específicos para a salvação. Se tirarmos esses dois conceitos chaves, não há mais qualquer razão para a missão e nem para a existência da própria Igreja. Como então reafirmá-los evitando qualquer fundamentalismo e exclusivismo? A reflexão teológica e a prática missionária juntam-se nesta busca a partir da convicção que Cristo e Igreja permanecem um mistério de fé. Participamos deste mistério na medida em que nos aproximamos sempre mais através de nossa compreensão, nossa prática e nossa missão. Compreender a missão não como atividade ou território, mas como “essência” de Deus e da Igreja, significa adoção de uma prática jesuana de proximidade aos outros e aos pobres, para comunicar vida em termos de humanidade, compaixão, gratuidade e fraternidade sem fronteiras, como caminho de salvação. “Fora do dom da vida (acolhido e oferecido) e da fraternidade não há salvação”, diria o DA com outras palavras (cf DA 359-360).
Esse anúncio para todos os povos deve lidar com o mistério de Deus, mas também com o mistério da pessoa humana que se torna interlocutora e destinatária dessa missão. Humanidade e compaixão se traduzem testemunhalmente em proximidade e reconhecimento.
Para a missão isso foi sempre um problema que se expressou nas definições severas dos outros como gentes, pagani, infiéis. Quem é, afinal, o outro? O outro para a missão permanece algo de indefinido a ser reconhecido e acolhido assim como ele se oferece. Quando encontra Natanael, Jesus reconhece primeiro o valor do jovem, apesar desse não ter logo reconhecido Jesus (cf. Jo 1, 45-49). A nossa missão precisa começar pelo reconhecimento dos “Natanaeis” do nosso tempo. Eles são também “dons de Deus” (o nome Natanael significa “Deus doou”). Nós podemos aceitar esse dom que Deus nos oferece na pessoa de Natanael somente se antes aceitarmos a maneira com a qual Natanael se doa a nós.
A missão evangelizadora na América de todos os tempos é deficitária desse reconhecimento dos outros e de suas culturas. Mas, há 40 anos, Medellín começou abrir as primeiras clareiras de descolonização, identificando o destinatário da missão no pobre, um pobre com rosto concreto (cf Puebla, 31-39), reconhecido em seu “valor inestimável aos olhos de Deus” (Medellín, 15, 7). Somente os olhos de Deus conseguem ver nas “ovelhas perdidas” a imagem copiosa da “grande colheita” (cf Mt 9, 36). A opção pelos pobres é fundamentalmente uma opção de fé e uma opção pelo ser humano ao mesmo tempo (se é que há intervalo de tempo entre as duas coisas). Uma opção para salvar a pessoa da dependência opressora e da dominação injusta, e uma opção para encontrar a Deus (cf. DA 257). Isso implica para a Igreja um deslocamento fundamental, uma saída de si, em termos de perceber e questionar a realidade do mundo do ponto de vista das vítimas, dos crucificados e dos injustiçados. Implica também, e sobretudo, a adesão a um projeto de mundo global mais justo e solidário, significativamente “outro” daquilo que temos diante dos olhos.
* Estêvão Raschietti, SX, é assessor do Conselho Missionário Nacional – Comina, e diretor do Centro Cultural Missionário - CCM, em Brasília, DF.
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