14/10/2010

O JUIZ INÍQUO E A VIÚVA TEIMOSA NA LUTA PELA JUSTIÇA - Frei Jacir de Freitas Farias, ofm

29º DOMINGO DO TEMPO COMUM
I. INTRODUÇÃO GERAL
Um juiz iníquo e uma viúva teimosa. Um juiz poderoso e incrédulo. Uma pobre mulher e vencedora. Dois personagens que apresentam um contraste entre suas atitudes, no evangelho de hoje. Duas atitudes que, aliadas às de Josué, Moisés e Paulo, iluminam a nossa caminhada de evangelizadores.
Outubro é o mês das missões. Na próxima semana, estaremos celebrando o dia mundial das missões. Em que esses textos podem nos ajudar na difícil tarefa de ser missionário? O missionário é aquele que, como a viúva, insiste no cumprimento da justiça de Deus.
II. COMENTÁRIOS DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Ex 17,8-13): Josué e Moisés: a luta social com espiritualidade. Nesta leitura, dois personagens se destacam: Josué e Moisés. O primeiro é enviado pelo segundo para cumprir a missão divina de ir ao país inimigo, dos amalecitas, habitantes da região do deserto do Neguev (1Sm 15,7), e destruí-los em nome do Deus de Israel, que os venceria. Israel e Amalec eram países irmãos, por serem descendentes de Esaú, irmão de Jacó, filhos de Isaac (Gn 14, 7; 36,12). Entretanto, reinava uma rivalidade constante entre eles. Ambos, em nome de Deus, queriam o extermínio um do outro pela ação divina (Ex 8,8-16). Os amalecitas eram uma ameaça constante a Israel, o povo de Deus. Este temia o fim da liberdade e da aliança com Deus.
Guardadas as devidas proporções, a narrativa se parece com a dos missionários de outrora. Os dominadores, portugueses ou espanhóis, levavam consigo a religião, representada pelo clero. Não por menos, um franciscano, frei Henrique de Coimbra, celebrou uma missa para marcar a chegada dos portugueses ao Brasil. Assim como nos parece absurdo saber que em nome de Deus se lutava no Primeiro Testamento, da mesma forma, a evangelização na América Latina custou a vida de tantos inocentes indígenas.
Moisés sobe a uma colina, lugar, na visão judaica, do encontro com Deus. Em suas mãos, ele traz uma vara. Mãos levantadas é sinal de vitória para Josué. Mãos abaixadas, derrota. Como não era fácil manter as mãos erguidas, seus auxiliares, o sacerdote e seu irmão Aarão, juntamente com Hur, que o acompanhava, resolvem segurar levantadas as mãos de Moisés até a vitória final de seu enviado.
Esse relato, à primeira vista simplório, faz parte da catequese da comunidade teologal eloísta, que o escreveu por volta do ano 740 a.E.C., para os israelitas. O objetivo dele era demonstrar que o povo tudo podia se estivesse com Deus. É Deus que combate no lugar do povo. Deus é um guerreiro valoroso. A vara de Moisés é a mesma que fez brotar água no deserto (Ex 17,5). Aarão e Hur são os responsáveis por manter as mãos de Moisés levantadas. Cada personagem tem o seu papel na história. Todos cumprem o papel de levar o poder do Deus de Israel a outros povos. Na verdade, podemos ver aqui uma ação missionária. Pena que o seu teor é o das grandes ações missionárias de que falamos anteriormente. Por outro lado, podemos destacar duas atitudes peculiares decorrentes do texto, as quais inspiram o trabalho missionário: Josué representa a luta política e Moisés, a espiritualidade. São dois modos de agir que precisam estar unidos no trabalho missionário. Se um fica enfraquecido, o outro também não resiste. A espiritualidade na missão libertadora, na luta social e política, são dois caminhos numa mesma estrada. Para o povo judeu, a sua missão no mundo é levar a santificação para todos os povos, o que inclui atitudes de luta social e espiritualidade. Para muitos, falar desse tema: luta social e espiritualidade, pode parecer fora dotempo, anacrônico, visto que cristãos aguerridos, como os das décadas de setenta e de oitenta, parecem não mais existir. Não. O tema é atual e merece nossa reflexão, de modo a encontrarmos novos caminhos de ação libertadora. Sem espiritualidade, o caminho da luta fica fraco.
2. Evangelho (Lc 18,1-8): juiz iníquo e a viúva: injustiça e fé. O evangelho deste domingo nos coloca em contraste duas pessoas, o juiz que não cumpre o seu papel de fazer justiça, e a pobre viúva que insiste até conseguir o seu intento, a justiça. Em Israel, a viúva, o órfão e o pobre formavam uma tríade que a lei tratava com especial atenção. “Socorrei o oprimido, fazei justiça ao órfão, defendei a viúva” (Is 1,17). “Defendei o oprimido e o órfão, fazei justiça ao humilde e ao pobre, livrai o oprimido e o necessitado, tirai das garras dos ímpios” (Sl 82,3-4). Outros textos bíblicos ressaltam que a viúva tinha proteção especial da Lei (Ex 22,20-23; Dt 14,28-29; 24,17-22), mas, sobretudo, de Deus, que escuta sua lamentação, a defende e a vinga (Dt 10,17; Eclo 35,14; Sl 94,6-10). Para o judeu, temer a Deus, ou melhor, reverenciar, é o mesmo que fazer cumprir a Lei a favor dos fracos e desprovidos (Ex 22,21-22; Dt 24,17).
Interessante é que Lucas, o evangelista que se preocupa com a salvação trazida por Jesus para os não judeus, é o único que conservou essa parábola da viúva. A comunidade de Lucas tinha como objetivo demonstrar que o cristão deve rezar sempre com fé e pedir com insistência a Deus em favor da justiça. Muitos cristãos estavam desanimados. Eles começavam a acreditar que não mais seria possível a realização do Reino pregado por Jesus. O cristão não pode sair da luta. Ele precisa perseverar sempre e dar testemunho de sua fé. Deus agirá em breve em favor dos pobres (v. 8), conforme esperavam também os judeus não cristãos (Eclo 35,18-19).
Somos sabedores de que a justiça em nosso país é lenta e não funciona em favor dos pobres. Um dia desses, uma juíza, diante de um caso que tinha dado sinais evidentes de crime, até mesmo com testemunho dos réus, se declarou surpresa em um telejornal com a decisão de absolvição por parte dos jurados. Ela disse ainda que isso é comum na justiça brasileira.
A ação missionária da igreja, buscando iluminação no evangelho, nos apresenta o desafio de evangelizar com base na justiça e na oração. Como a viúva, a insistência leva a vitória do pobre que, mesmo não tendo recursos econômicos, sai à procura de soluções. Os pobres de hoje, as viúvas de ontem, são a razão principal das missões dentro e fora da igreja. Juízes injustos e sistemas econômicos que não geram vida, estes sim, devem ser evangelizados e conclamados à conversão. Como a viúva, os pobres devem persistir na luta e na eterna esperança de um mundo de justiça, paz e fraternidade. Essa é a missão de todos, ricos e pobres, que acreditam na boa-nova do evangelho de Jesus Cristo.
3. II leitura (2Tm 3,14-4,2): Paulo a Timóteo: a missão do cristão é pregar a Palavra de Deus com esperança e sede de justiça. Nesta leitura, Paulo, mais uma vez, escrevendo a Timóteo, retoma o valor da fé e da pregação da Palavra de Deus. Ele retoma a infância de Timóteo, sua experiência familiar, para dizer que foi ali que ele recebeu os ensinamentos que deve transmitir. Paulo, o grande missionário, insiste em ressaltar valores que o cristão não pode perder no exercício de sua missão: anunciar a Palavra de Deus com coragem; levá-la a quem não a conhece; questionar quem não a pratica; animar aqueles que perderam a esperança; educar na justiça. Em síntese, o missionário deve ser fiel à Palavra e perseverante na fé que anuncia. Eis aí um programa de missão. A igreja deve sobremaneira a Paulo que, imbuído desses princípios, levou o cristianismo para além de Israel. O cristianismo é mais paulino que petrino.
Paulo insiste na atitude missionária de Timóteo, tendo como duas testemunhas de sua ação o próprio Deus e Cristo Jesus, aquele que virá em breve, na parusia, como juiz escatológico. O número dois é simbólico na visão judaica. Sempre eram necessárias duas pessoas para servir de testemunho. Daí o fato de Jesus enviar os discípulos dois a dois em missão. Mulheres e crianças não podiam dar testemunho.
Timóteo, assim como todo missionário, terá que prestar conta de sua ação evangelizadora. Somos responsáveis pelos nossos atos. Outro detalhe fundamental: a Bíblia, Palavra inspirada por Deus, é arma principal na missão que educa na justiça, corrige, instrui e refuta qualquer ação que não condiz com o plano da salvação. Paulo relê o Primeiro Testamento na perspectiva de Jesus. Ele é a chave de interpretação da Bíblia e a sabedoria de Deus. A Bíblia nos conduz, em Jesus Cristo, à salvação. Pena que, em nossos dias, ela é interpretada por muitos cristãos de forma fundamentalista, ao pé da letra.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
1. Demonstrar as atitudes do juiz iníquo em contraste com a persistência da pobre viúva, na missão evangelizadora de todos nós.
2. Mostrar as dificuldades inerentes à ação evangelizadora da igreja, sobretudo no que se refere à justiça social.
3. Perguntar pela vida de oração, pela esperança e luta da comunidade. Como estamos vivenciando esses valores?

Fonte: VIDA PASTORAL.

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