Se antes a liberdade sequer era pensada como valor, agora a felicidade depende da liberdade e de sua consequente – e, às vezes, angustiante – possibilidade de escolher, como disse Heller Agnes no seu tratado, O cotidiano e a história. (1985). Nossas escolhas são feitas em um ambiente, em uma cultura. Essa cultura configura a maneira pela qual fazemos nossas escolhas pela vida afora; até mesmo a maneira peal qual escolhemos nossos valores.
Hoje o mundo, na qual nos encontramos, pode ser caracterizado como um mundo narcisista. Por conseguinte, o indivíduo privilegiado por ele é a pessoa narcisista. Grande parte dos problemas que enfrentamos hoje tem estreita correlação com o nosso narcisismo cultural, que configura como vivemos atualmente.
Lembramos que todos nós temos em nossa personalidade – e precisamos ter – certa dose de narcisismo. Quando bem dosado, podemos dizer, grosso modo, o narcisismo é o amor-próprio. O problema começa quando esse narcisismo começa a ficar exagerado, porque aí gera prejuízos, sofrimentos e dores.
De acordo com Schwartz Salant, na sua obra, Narcisismo e transformação do caráter. São Paulo: Cultrix, 1995, um indivíduo narcisista tem algumas características. São:
- Preocupa-se mais em aparentar que em ser.
- Tem imensas dificuldades com a proximidade, ou seja, teme a intimidade e o compromisso amoroso.
- Tem extrema sensibilidade a criticas, pois percebe toda critica como ameaça pessoal.
- Tem dificuldade de lidar com os aspectos simbólicos da vida
- É egocêntrico, com dificuldade de desenvolver empatia com os ouros.
- Orgulha-se de não precisar dos outros ou imagina-se como não influenciável
- É extremamente competitivo.
- Tem grande dificuldade para lidar com os aspectos femininos da existência.
- Trata-se como um objeto e faz o mesmo com os outros.
- Tem dificuldades de lidar com o tempo e com o envelhecimento
- É francamente hedonista.
- Tem imenso potencial, mas teme realizá-lo, de modo que, enquanto não o realiza, a profundidade é trocada pela ostentação.
A cultura moderna pode ser entendida como uma sociedade narcísica porque tem características típicas do narcisismo e principalmente porque exige que cada membro, para ser aceito, se comporte segundo os parâmetros acima listados. Ou, nas palavras de Lasch, na sua obra, A cultura do narcisismo. Rio de janeiro: Imago, 1983, “a sociedade narcisista é aquela que dá crescente proeminência e encorajamento a traços narcisistas – que são: a relação com o tempo, o hedonismo, a relação como o corpo, e a dificuldade com a empatia”. Destacamos brevemente dessa lista de traços narcisistas, quatro características:
- O tempo narcísico é um tempo de imediatismo e de hedonismo. Compre hoje, aproveite já e só comece a pagar daqui a dois meses. Cursos superiores em menos de dois anos, viagens a jato, trens-bala, carros supervelozes, responsabilidades precoces – a vida é uma correria. Tudo tem de ser para aqui e agora.
- O hedonismo como uma ideologia que defende ser o prazer o bem supremo, a finalidade e o fundamento da vida; ou seja, a ideologia hedonista sustenta que se deve ter o maior prazer possível a cada momento, com pouca atenção às conseqüências de cada ato, pouco importa de onde venha esse prazer. A vida abundantemente vivida é confundida com a vida inconsequentemente vivida. Pessoas esqueçam que a finalidade da vida são as relações, é o desenvolvimento máximo dos potenciais de cada pessoa em sua relação com as outras e com o mundo. O prazer é importante e mesmo fundamental na vida. Ele não é a finalidade da vida. É meio, um dos melhores meios, mas não o único.
- É no cuidado como o corpo que encontramos os maiores problemas com a ideologia narcísica, especialmente no caso dos mais jovens. Um indivíduo narcisista tem imensa dificuldade em sentir e perceber emoções. O contato narcisista com os sentimentos é extremamente deficiente, embora o contato com as sensações seja intensificado: em vez da coragem, vive temeridade; em vez do medo, pânico; no lugar da tristeza, depressão; em vez da alegria, euforia; no lugar da raiva, competividade; em vez de amor, manipulação e culpa. O narcisista lida com o corpo como se fosse um objeto a serviço do ego, algo a ser usado, e não vivido. O corpo passa a ser algo que se tem, em vez de algo que se é. A relação intima, face a face, é muito penosa para a pessoa narcisista. Ela prefere comer vendo TV, conversar vendo TV, isolar-se vendo TV dentre outras ações.
- Uma das mais importantes barreiras à empatia e à solidariedade é certa falta de atenção para com os pequenos gestos, para com as pequenas atitudes. Necessitamos urgentemente de um incremento da empatia, pois, à medida que conseguimos acentuar a capacidade de empatia, ampliamos nossa intolerância à dor alheia, o que pode nos levar a ações de maior cuidado e atenção para com nós mesmos, para com o outro e para com o ambiente.
Assim como uma cultura muda em conseqüência de suas conquistas, mudam também as pessoas nela inseridas e mudam também os valores dessas pessoas e da cultura. Cada novo saber nos põe diante da obrigatoriedade de escolher. Nossas escolhas não são feitas apesar da cultura em que vivemos, concordemos com ela ou não. E cada cultura também faz suas escolhas e privilegia determinados jeitos de ser. Qual é a sua cultura; e quais são as suas escolhas e valores?
*Este artigo é resumo de artigo do Ênio Brito Pinto – Sexualidade e Ética: Um olhar do Psicólogo. Revista Vida Pastoral, edição novembro-dezembro de 2010 – ano 51 – n. 275. São Paulo: Paulus, p.6-11.
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